quinta-feira, 21 de junho de 2012

EDUARDO GALEANO



Eduardo Hughes Galeano, mais conhecido como Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, nasceu na cidade de Montevidéu, no dia 3 de setembro de 1940. Ele atuou como chefe de redação do periódico Marcha e também dirigiu o veículo Época, trabalhos realizados em sua cidade de origem. Neste período ele igualmente instituiu e administrou a revista Crisis, desta vez em Buenos Aires.
Exilado na Argentina e na Espanha entre 1973 e 1985, retornou ao Uruguai neste ano, fixando residência em Montevidéu. Autor de inúmeras obras literárias e jornalísticas, traduzidas em mais de vinte idiomas, ele exercita seu estilo literário compondo pequenas histórias que abordam desde temas políticos significativos no contexto histórico da América Latina até uma temática singela, enfocando fatos do dia-a-dia e até mesmo o futebol. Neste sentido, ele é considerado um escritor da estirpe de John dos Passos e Gabriel García Márquez.
Um de seus livros mais célebres e importantes é As Veias Abertas da América Latina, obra na qual narra em uma linguagem poética e arrebatadora, com intensidade ímpar, a terrível exploração que atingiu duramente os países latino-americanos, a qual provocou a extinção de vários povos, o extermínio de inúmeros habitantes da América Latina, deixando dolorosas cicatrizes e seqüelas que rasgam de ponta a ponta a região latino-americana.
Sua obra tem sido amplamente reconhecida e premiada. Nos anos de 1975 e 1978 ele conquistou o prêmio Casa de Las Américas; recebeu o Aloa, oferecido pelas editoras da Dinamarca, em 1993; sua trilogia Memória do Fogo foi condecorada pelo Ministério da Cultura do Uruguai; foi agraciado também com o American Book Award, pela Washington University, dos Estados Unidos, em 1989.
Posteriormente, em 1999, Eduardo Galeano tornou-se o primeiro escritor a receber um prêmio doado a quem contribuísse para a Liberdade Cultural, da parte da Lannan Foundation, do Novo México. Ele também foi homenageado com o título de primeiro cidadão ilustre do Mercosul. Em 2001, no mês de Dezembro, ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa, concedido pelaUniversidade de Havana, de Cuba.
Algumas de suas principais obras são: De pernas pro ar, Dias e noites de amor e de guerra, Futebol ao sol e à sombra, O livro dos abraços, Memória do fogo (que inclui Os nascimentos, As caras e as máscaras e O século do vento), Mulheres, As palavras andantes, Vagamundo (todos publicados pela L&PM Editores) e As veias abertas da América Latina (lançado pela Editora Paz e Terra).
Fontes
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Galeano
http://html.editorial-caminho.pt
Por Ana Lucia Santana



Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.







Neste livro, Galeano parte de Alice, a personagem de Lewis Carrol, para mostrar que as coisas não vão bem no nosso mundo.
Há 130 anos, depois de visitar o País das Maravilhas, Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela.
E se tudo está do avesso, o autor destrincha o quanto a partir de fatos e de eventos históricos e jornalísticos. Na escola do mundo ao avesso que todos reconhecemos, os alunos frequentam cursos básicos de injustiça, de racismo e machismo, assistem a cátedras de medo, seminários de ética, aulas magistrais de impunidade, são formados na pedagogia da solidão e diplomam-se na contraescola. Tão verdadeiro e emotivo quanto cruel.







O MEDO GLOBAL

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho, os que não trabalham têm medo de nunca encontrar o trabalho.
Quem não tem medo da fome tem medo da comida.
Os automobilistas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados.
A democracia tem medo de recordar e a linguagem tem medo de dizer.
Os civis têm medo dos militares e os militares têm medo da falta de armas.
As armas têm medo da falta de guerras.
Medo da mulher à violência do homem, medo do homem das mulheres sem medo.
Medo dos ladrões, medo da polícia.
Medo da porta sem fechadura, do tempo sem relógio, das crianças sem televisão.
Medo da noite sem comprimidos para dormir, medo de dia sem comprimidos para acordar.
Medo da multidão, medo da solidão.
Medo do que foi e do que pode ser.
Medo de morrer, medo de viver.



















As perdas das coisas, confesso que nunca me importaram muito. Mas as perdas das pessoas sim, doeram e, em alguns casos, deixaram um buraquinho bem difícil de preencher. Mas este mundo está armado assim, é um tecido de encontros e desencontros, de perdas e ganhos, e o melhor dos meus dias é o que ainda não vivi. E cada perda corresponde a um encontro que ainda não tive e, por sorte, a realidade é generosa e não falha nisso. Na verdade, eu escrevo para celebrá-la e a celebrando, denuncio tudo que impede que a gente reconheça nos outros e em nós mesmos, as múltiplas cores do arco-íris terrestre. Somos muitíssimo mais do que nos dizem que somos!“


O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.


A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.




“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.”









O mundo
Um homem da aldeia de Negu・ no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida
humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
— O mundo é isso — revelou — Um montão de gente, um mar de
fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras
de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem
queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.





Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre.


Quando as palavras não são tão dignas quanto o silêncio, é melhor calar e esperar.








O direito a sonhar


O que acham se delirarmos um pouquinho? 
O que acham se fixamos nossos olhos mais além da infâmia, para imaginarmos outro mundo possível.

Tente adivinhar como será o mundo depois do ano 2000. Temos apenas uma única certeza: se estivermos vivos, teremos virado gente do século passado. Pior ainda, gente do milênio passado.

Sonhar não faz parte dos trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram no final de 1948. Mas, se não fosse por causa do direito de sonhar e pela água que dele jorra, a maior parte dos direitos morreria de sede. Deliremos, pois, por um instante. O mundo, que hoje está de pernas para o ar, vai ter de novo os pés no chão.

Nas ruas e avenidas, carros vão ser atropelados por cachorros.

O ar será puro, sem o veneno dos canos de descarga, e vai existir apenas a contaminação que emana dos medos humanos e das humanas paixões.

O povo não será guiado pelos carros, nem programado pelo computador, nem comprado pelo supermercado, nem visto pela TV. A TV vai deixar de ser o mais importante membro da família, para ser tratada como um ferro de passar ou uma máquina de lavar roupas.

Vamos trabalhar para viver, em vez de viver para trabalhar.

Em nenhum país do mundo os jovens vão ser presos por contestar o serviço militar. Serão encarcerados apenas os quiserem se alistar.

Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem de qualidade de vida a quantidade de coisas.

Os cozinheiros não vão mais acreditar que as lagostas gostam de ser servidas vivas.

Os historiadores não vão mais acreditar que os países gostem de ser invadidos.

Os políticos não vão mais acreditar que os pobres gostem de encher a barriga de promessas.

O mundo não vai estar mais em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza. E a indústria militar não vai ter outra saída senão declarar falência, para sempre.

Ninguém vai morrer de fome, porque não haverá ninguém morrendo de indigestão.

Os meninos de rua não vão ser tratados como se fossem lixo, porque não vão existir meninos de rua. Os meninos ricos não vão ser tratados como se fossem dinheiro, porque não vão existir meninos ricos.

A educação não vai ser um privilégio de quem pode pagar por ela.

A polícia não vai ser a maldição de quem não pode comprá-la.

Justiça e liberdade, gêmeas siamesas condenadas a viver separadas, vão estar de novo unidas, bem juntinhas, ombro a ombro.

Uma mulher - negra - vai ser presidente do Brasil, e outra - negra - vai ser presidente dos Estados Unidos. Uma mulher indígena vai governar a Guatemala e outra, o Peru.

Na Argentina, as loucas da Praça de Maio vão virar exemplo de sanidade mental, porque se negaram a esquecer, em tempos de amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja vai corrigir alguns erros das Tábuas de Moisés. O sexto mandamento vai ordenar: "Festejarás o corpo". E o nono, que desconfia do desejo, vai declará-lo sacro. 

A Igreja vai ditar ainda um décimo-primeiro mandamento, do qual o Senhor se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte". Todos os penitentes vão virar celebrantes, e não vai haver noite que não seja vivida como se fosse a última, nem dia que não seja vivido como se fosse o primeiro.

Ler mais: http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=207096#ixzz1yM5o1JGf
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"A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo."




Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens.




...De Cuba em diante, outros países também iniciaram por distintas vias e distintos meios a experiência de mudança: a perpetuação da atual ordem de coisas é a perpetuação do crime.
Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas, ao longo da torturada história latino-americana, ressurgem nas novas experiências, assim como os tempos presentes tinham sido pressentidos e engendrados pelas contradições do passado. A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será...





Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: Ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.


"Assovia o vento dentro de mim.
Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara."



Não importa de onde vim, mais sim aonde quero chegar




Somos porque ganhamos. Se perdemos, deixamos de ser.




A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhece-la.




Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos.




Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno.




Em certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem - a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta.













terça-feira, 19 de junho de 2012

HENRIQUETA LISBOA







A poetisa, ensaísta e tradutora Henriqueta Lisboa  nasceu na cidade de Lambari, no Estado de Minas Gerais, no dia 15 de julho de 1901, fruto da união entre o deputado federal João de Almeida Lisboa e Maria Rita Vilhena Lisboa. Ela se torna, posteriormente, a primeira escritora a ser eleita integrante da Academia Mineira de Letras, em 1963.
Jovem estudante, ela recebe o diploma de normalista no Colégio Sion de Campanha, ainda em Minas. Logo depois, em 1924, ela se transfere para terras cariocas. Henriqueta se devota à poesia prematuramente. Em 1929 ela já tem seu primeiro poema, Enternecimento, premiado; ela angaria então o Prêmio Olavo Bilac de Poesia da Academia Brasileira de Letras.
Sua primeira obra, intitulada Fogo Fátuo, foi publicada quando ela tinha apenas 21 anos, o que confirma seu talento precoce. Ao público infantil ela reserva três livros – O Menino Poeta, de 1943; Lírica, de 1958; e o relançamento, em 1975, do primeiro trabalho devotado às crianças, lançado igualmente em disco pelo Estúdio Eldorado.
Um dos maiores impactos em sua carreira literária é a participação no movimento modernista, em 1945. Nesta época ela foi incentivada a integrar esta escola pelo amigo Mário de Andrade, principalmente através das cartas que ambos trocaram entre 1940 e 1945.
Além dos poemas, Henriqueta produziu várias traduções, ensaios e antologias. Escritora de intensa sensibilidade, ela se devotou de corpo e alma à criação de seus poemas. Ao longo de sua trajetória literária, a poetisa sempre se manteve receptiva a novos estímulos e sugestões de seus contemporâneos, conquistando assim inúmeros admiradores no meio artístico e intelectual, entre eles Mário de Andrade,Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Gabriela Mistral.
Henriqueta foi homenageada, em 1984, com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por sua obra como um todo. Paralelamente ao ofício literário, ela atuou também no campo do magistério, como professora de Literatura Hispano-Americana e Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica (Puc Minas) e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e como inspetora escolar.
Esta célebre poetisa morreu em 9 de outubro de 1985, na cidade de Belo Horizonte. Em 2002 houve vários eventos comemorativos em prol de seu centenário de nascimento, quando então foram relançados vários de seus livros, em meio a diversas realizações de natureza cultural.
Em sua bibliografia constam inúmeras obras, entre elas Velário (1936); Prisioneira da noite (1941); A face lívida (1945), dedicado à memória de Mário de Andrade, morto nesse mesmo ano; Flor da morte (1949); Madrinha Lua (1952); Azul profundo (1955); Nova Lírica ((1971); Belo Horizonte bem querer (1972); Pousada do ser (1982) e Poesia Geral (1985), coletânea de poemas escolhidos pela própria escritora, extraídos do total de sua obra, a qual foi publicada uma semana depois de sua morte.


Fontes:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Henriqueta_Lisboa
http://www.revista.agulha.nom.br/hlisbo00.html




Os Lírios


Certa madrugada fria 
irei de cabelos soltos 
ver como crescem os lírios.
Quero saber como crescem 
simples e belos — perfeitos! — 
ao abandono dos campos.
Antes que o sol apareça 
neblina rompe neblina 
com vestes brancas, irei.
Irei no maior sigilo 
para que ninguém perceba 
contendo a respiração.
Sobre a terra muito fria 
dobrando meus frios joelhos 
farei perguntas à terra.
Depois de ouvir-lhe o segredo 
deitada por entre os lírios 
adormecerei tranqüila.



Infância 


E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

 
A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

 
nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termomêtro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

 
A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

 
A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

 
A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado!


Publicado: Prisioneiro da Noite (1941)




Ciranda de mariposas

Vamos todos cirandar
ciranda de mariposas.
Mariposas na vidraça
são jóias, são brincos de ouro.

Ai! poeira de ouro translúcida
bailando em torno da lâmpada.
Ai! fulgurantes espelhos
refletindo asas que dançam.

Estrelas são mariposas
(faz tanto frio na rua!)
batem asas de esperança
contra as vidraças da lua.



Segredo

Andorinha no fio
escutou um segredo.
Foi à torre da igreja,
cochichou com o sino.

E o sino bem alto
Delém-dem
Delém-dem
Delém-dem
Delém-dem!

Toda a cidade
ficou sabendo.



A ovelha

Encontrastes acaso
a ovelha desgarrada?
A mais tenra
do meu rebanho?
A que despertava ao primeiro
contato do sol?
A que buscava a água sem nuvens
para banhar-se?
A que andava solitária entre as flores
e delas retinha a fragrância
na lã doce e fina?
A que temerosa de espinhos
aos bosques silvestres
preferia o prado liso, a relva?
A que nos olhos trazia
uma luz diferente
quando à tarde voltávamos
ao aprisco?
A que nos meus joelhos brincava




Coraçãozinho

Coraçãozinho que bate
tic-tic
Relóginho do papai
tic-tac
Vamos fazer uma troca?
tic-tic-tic-tac
Relógio fica comigo
tic-tic
dou coração a Papai
tic-tic-tac.



Mamãezinha

Mamãezinha, conta,
conta um história!

Mamãezinha agora
está no fogão
fazendo quitutes
para o seu neném.

Mamãezinha, conta,
conta uma história!

Mamãezinha agora
está no tanque
lavando as roupas
do seu neném.

Conta, Mamãezinha,
conta uma história!

Mamãezinha agora
está no seu sono
cansado, sem sonhos.


Esse despojamento 


Esse despojamento
esse amargo esplendor.
Beleza em sombra
sacrifício incruento.
 

A mão sem jóias
descarnada
na pureza das veias.
A voz por um fio
desnuda
na palavra sem gesto.
 

O escuro em torno
e a lucidez
violenta lucidez terrível
batida de encontro ao rosto
como uma ofensa física.
 

Na imensidade sem pouso,
olhos duros
de pássaro.


Publicado: A Face Lívida (1945)



De súbito cessou a vida. 


De súbito cessou a vida.
Foram simples palavras breves.
Tudo continuou como estava.
 
O mesmo teto, o mesmo vento,
o mesmo espaço, os mesmos gestos,
Porém como que eternizados.
 
Unção, calor, surpresa, risos
tudo eram chapas fotográficas
há muito tempo reveladas.
 
Todas as cousas tinham sido
e se mantinham sem reserva
numa sucessão automática.
 
Passos caminhavam no assoalho,
talheres batiam nos dentes,
janelas se abriam, fechavam.
 
Vinham noites e vinham luas,
madrugadas com sino e chuva.
Sapatos iam na enxurrada.
 
Meninas chegavam gritando.
Nasciam flores de esmeralda
no asfalto! mas sem esperança.
 
Jornais prometiam com zelo
em grandes tópicos vermelhos
o fim de uma guerra. Guerra?...
 
Os que não sabiam falavam.
Quem não sentia tinha o pranto.
(O pranto era ainda o recurso
de velhas cousas coniventes.)
 
Nem o menor sinal de vida.
Tão-só no fundo espelho a face
lívida, a face lívida.


Publicado: A Face Lívida (1945)


É estranho


É estranho que, após o pranto
vertido em rios sobre os mares,
venha pousar-te no ombro
o pássaro das ilhas, ó náufrago.

É estranho que, depois das trevas
semeadas por sobre as valas, 
teus sentidos se adelgacem
diante das clareiras, ó cego.

É estranho que, depois de morto,
rompidos os esteios da alma
e descaminhado o corpo, 
homem, tenhas reino mais alto. 
 
 (da obra Flor da Morte)


Vem, doce morte


Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores - secreto -
não é senão prenúncio 
de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora 
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso - mais alto - refloresça.
 

Lábios que não se abrem, lábios 


Lábios que não se abrem, lábios
com seu segredo
calado
 
Segredo no ermo da noite
resiste à rosa dos ventos
calado.
 
Flauta sem a vibração
do sopro.
Luar e espelho, frente a frente,
em calada
vigília.
 
Fria espada unida
ao corpo.
 
Resto de lágrimas sobre
lábios
calados.
 
Borboleta da morte
em sorvo
pousada à flor dos lábios
calados
calados.


Publicado: A Face Lívida (1945)




A menina selvagem

 
Para Ângela Maria

A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.
 

Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Publicado: Lírica (1958)



Assim é o medo 


Assim é o medo:
cinza
Verde.
Olhos de lince.
Voz sem timbre
Torvo e morno
Melindre.
 
Da sombra espreita
à espera de algo
 
que o alente.
Não age: tenta
porém recua
a qualquer bulha.
 
No campo assiste
junto ao títere
à cruz que esparze
vivo gazeio
de nervosismo
com vidro moído
grácil granizo
de pássaros.
 
E que rascante
violino brusco
não arrepia
ao longo o azul
dos meus veludos
se, a noite em meio
cá no fundo
quarto escuro,
a lua arrisca
numa oblíqua
o olhar morteiro.
 
Dentro da jaula
(mundo inapto)
do domador
em fúria à fera
subsinuosa-
mente resvala.
 
Aos frios reptos
do ziguezague
em choque, súbito
relampagueio,
 
 as duas forças
se opõem dúbias
se atraem foscas
para a luta
pelo avesso:
despiste e fuga
ouro e vermelho
desde a entranha.
 
As duas forças
antagônicas:
qual delas ganha
acaso
ou perde
o medo
frente a
frente ao
medo?


Publicado: Além da Imagem (1963)
 



Saudação a Drummond 


Eu te saúdo Irmão Maior
pelo que tens sido e serás
dentro do tempo espaço afora
e além da vida: luminar
homem simples da terra
aprisionado no íntimo
para libertador de pássaros
e agenciador de símbolos.
Pela pedra no caminho
que foi ato de bravura
e foi cabo de tormentas.
Pelo brejo das almas
em verde com margaridas.
Pelo sentimento do mundo
com que orvalhas o linho
da comunhão geral.
Pelas fazendas do ar
em que brindas cultivos
de transcedentes dimensões.
Pelos claros enigmas
que decifras e que armas
em desdobrados ciclos.
Pela vida passada a limpo
em lâminas de cristal.
Pela rosa do povo
com que humanizas o asfalto.
Pela lição de coisas
que nos ensinas a aprender.
Pelo boitempo este sabor
de renascimento da infância.
Em nome de Mário de Andrade
— até as amendoeiras falam —
em nome de Manuel Bandeira
em nome de Emílio Moura
presentes embora silentes
no alto da Casa em outros
mais cômodos aposentos
de onde nos contemplam líricos
a nós abaixo no vestíbulo.
Saúdo-te mineiro Carlos
de olhos azuis como os da criança
guardada sempre mais a fundo
em candidez e malícia
ao largo de lavouras híspidas
ao longo de setenta outubros
vincados de diamante e ferro
sem nostalgia de crepúsculo.
Saúdo-te com sete rosas
em botão as mais puras
colhidas de madrugada
antes do sol em suas pétalas
por teu sétimo aniversário
outrora
de menino poeta.


Publicado: Miradouro e Outros Poemas (1976)
  
 



Obras:

Fogo-Fátuo (1925)
Enternecimento (1929)
Prisioneira da Noite (1941)
A Face Lívida (1945)
Flor da Morte (1949)
Poemas (1951)
Azul Profundo (1956)
Lírica (1958)
Além da Imagem (1963)
Nova Lírica (1971)
Reverberações (1976)
Pousada do Ser (1982)
Presença de Henriqueta Lisboa (1992)



Fonte: http://pt.shvoong.com/books/biography/1659839-henriqueta-lisboa-vida-obra/#ixzz1yF60pdZj