Escritor português, natural de Santiago do Cacém.
Iniciou-se em poesia com a publicação de Rosa dos Ventos (1940) e, na ficção, com os contos Aldeia Nova (1942). Ligado ao neo-realismo, evoluíu no sentido de um regionalismo crescente, ligado ao seu Alentejo natal, retratando o povo desta região e a miséria por ele sofrida.
Colaborou em jornais e revistas e fez parte do grupo do Novo Cancioneiro. Escreveu, para além das obras acima referidas, os volumes de poesia Planície (1941) e Poemas Completos (1958), os contos
O Fogo e as Cinzas (1951) e Um Anjo no Trapézio (1968), e os romances Cerromaior (1943), Seara de Vento (1958, uma das suas obras de maior êxito), e Tempo de Solidão (1973). Da sua colaboração no jornal A Capital surgiram, em 1986, as Crónicas Algarvias. Preparou, ainda, uma Antologia de Fialho de Almeida (1984)
O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca
O Fogo e as Cinzas, publicado em 1951, é um dos mais significativos livros de contos da moderna literatura portuguesa, onde a arte de Manuel da Fonseca atinge a perfeita maturidade, revelando-se então um escritor de tendência regionalista e de funda preocupação humana, que retrata a vida pobre dos trabalhadores rurais das planícies alentejanas, dando especial realce à sua luta contra a injustiça. Os contos são acerca de um Alentejo dos anos 40 e 50, rústico e em decomposição. Eles nos falam das gentes de uma terra maravilhosa mas pobre: esse Alentejo de há muitas décadas, que assistia aos primeiros passos de um progresso lento. As personagens são crianças, velhos, camponeses, habitantes de pequenas vilas ou cidades, alguns deles condenados à exclusão pela pobreza ou pelo esquecimento - cenas de um passado que em alguns casos se prolongaram até ao presente. O mundo que aparece na obra corresponde a um Alentejo certamente mitificado no imaginário neo-realista como lugar da revolta dos camponeses contra os latifundiários, mas transcende essa dimensão da luta de classes pela presença de uma panorâmica social mais vasta, em que avulta a personagem um tanto marginal do maltês ou o universo das pequenas vilas modorrentas, cujos habitantes se reúnem no café ou no largo principal, verdadeiro "centro do mundo" para onde convergem as histórias ora dramáticas, ora quase picarescas, que enriquecem narrativamente o conjunto.
RESUMO DO CONTO: O Fogo e as Cinzas DE MANUEL DA FONSECA
O Sr. Portela passa todos os dias da sua vida a pensar no seu passado. Tem muitos acontecimentos que lhe vem á memória com uma intensidade monstruosa. Sem ter necessidade de fazer um grande esforço, os acontecimentos surgem na sua mente como se as pessoas estivessem presentes.
Antoninha Das Dores é a sua maior mágoa. Vive numa amargura diária ao lembrar-se que tinha sido um fogo que lhe arrebatou o seu grande amor. Ainda maior é a sua dor porque a sua amada não morreu nesse fogo, mas sim tinha sido um bombeiro que ao socorrê-la a trouxe para a rua só em camisa de dormir. Esse facto foi determinante. O SR. Portela ainda hoje não consegue viver com o facto de a sua noiva ter sido vista nua por toda a vila.
Passados trinta anos ainda chora o facto de ter sido um acontecimento tão diminuto que lhe arruinou a vida. Antoninha Das Dores vem nos braços de Chico Biló, é esta a imagem que lhe vem mais vezes á memoria.
Passa os dias a correr para o café como tivesse Mestre Poupas bombeiro e André Juliano á espera, mas estes já não estão com ele por motivos diferentes. Mestre Poupas bombeiro já faleceu e André Juliano está preso. Este ultimo era seu grande amigo de infância e colega de escola que deixaram ambos muito cedo. Mestre Poupas bombeiro, conheceu-o quando este veio de Lisboa para trabalhar na vila. Nessa altura andava a vila com problemas com os fogos porque os maiores prejuízos eram os bombeiros improvisados que os provocavam.
Encontravam-se todas as tardes estes três amigos para conversarem. O motivo destas conversas não podia deixar de ser o fogo. Mestre Poupas bombeiro contava-lhes com pormenores como tinha ganho todas aquelas medalhas e condecorações a apagar fogos e o Sr. Portela ouvia com muita atenção. Já André Juliano vivia na angústia do seu pai ser um homem rico e dar-lhe apenas uns míseros vinte e cinco tostões. Foi por causa disto que o Sr. Portela perdeu os seus amigos.
André Juliano deixou de dar pouca atenção aos amigos quando estes falavam de fogo para passar a ser o seu tema preferido, mesmo não admitindo. Ausentou-se durante dois dias e os seus dois amigos ficaram surpreendidos por tal facto, mas lá foi dizendo que teve uns assuntos a tratar.
Passadas umas noites gritou-se” fogo” e Sr. Portela não podia deixar de correr para o local e ao chegar ao local primeiro que todos, verificou que as chamas vinham de casa de André Juliano.
O fogo, esse já se encontrava em estado avançado e ao procurar entre os bombeiros lá encontrou Mestre Poupas de rosto transtornado a apitar sem energia e a dar ordens gaguejadas. Passou a rua para o outro lado e viu Chico Biló que também era da opinião que Mestre Poupas estava com medo do fogo e que se fosse no tempo dele já estaria tudo apagado. Lá veio à memória mais uma vez a imagem de Antoninha das Dores. De repente olhou e viu André Juliano e disse-lhe que havia incêndios que desgraçam um homem para sempre, mas há outros que salvam.
Quando se aperceberam que estaria dentro de casa o pai do seu amigo de infância começaram a gritar por ele. O Sr. Portela pediu ao seu amigo Mestre Poupas que lá fosse dentro salvá-lo. O Mestre ao ouvir tal pedido apercebeu-se que tinha a ver com os actos heróicos que lhe tinha contado. E não querendo dar parte de fraco entrou dentro da casa a arder.
Momentos depois saíam três bombeiros de dentro de casa transportando uma cama de ferro com o corpo calcinado do pai de André Juliano com os pulsos e pernas amarradas á cama.
E quando o Sr. Portela já se preparava para se ir embora, outros dois bombeiros traziam o corpo sem vida de Mestre Poupas com bocados de corda que faltavam na cama ardida.
Hoje já não tem coragem de voltar a ver incêndios, por mais vontade que tenha, mas isso pouca importância tem. Qualquer das maneiras consegue rever a sua desgraça, em casa ou no café senta-se puxa do seu cigarro e Antoninha Das Dores vem. Vem novamente de camisa branca de dormir.
E é assim que ela fica, horas a fio diante dos seus olhos rasos de água.
Nos últimos tempos quem trás a sua amada nos braços já não é Chico Biló. É Mestre Poupas bombeiro e ao seu lado vem André Juliano.
E assim passa os dias a pensar na sua amada e nos amigos que perdeu num incêndio.
Por: Nuno Soares
VidaVida:
sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas
cadenciadas
rítmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo...
O vento da noite badala nos ramos
sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
— maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!
SolidãoQue venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humilhados
os torturados
os loucos:
meu abraço é cada vez mais largo
envolve-os a todos!
Ó minha vontade, ó meu desejo
— os pobres e os humilhados
todos
se quedaram de espanto!...
(A luz do Sol beija e fecunda
mas os místicos andaram pelos séculos
construindo noites
geladas solidões.)
Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"
Tu e Eu Meu AmorTu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.
Manuel da Fonseca, in "Poemas para Adriano"
Dona Abastança«A caridade é amor»
Proclama dona Abastança
Esposa do comendador
Senhor da alta finança.
Família necessitada
A boa senhora acode
Pouco a uns a outros nada
«Dar a todos não se pode.»
Já se deixa ver
Que não pode ser
Quem
O que tem
Dá a pedir vem.
O bem da bolsa lhes sai
E sai caro fazer o bem
Ela dá ele subtrai
Fazem como lhes convém
Ela aos pobres dá uns cobres
Ele incansável lá vai
Com o que tira a quem não tem
Fazendo mais e mais pobres.
Já se deixa ver
Que não pode ser
Dar
Sem ter
E ter sem tirar.
Todo o que milhões furtou
Sempre ao bem-fazer foi dado
Pouco custa a quem roubou
Dar pouco a quem foi roubado.
Oh engano sempre novo
De tão estranha caridade
Feita com dinheiro do povo
Ao povo desta cidade.
Manuel da Fonseca, in "Poemas para Adriano"
As BalasDá o Outono as uvas e o vinho
Dos olivais o azeite nos é dado
Dá a cama e a mesa o verde pinho
As balas dão o sangue derramado
Dá a chuva o Inverno criador
As sementes da sulcos o arado
No lar a lenha em chama dá calor
As balas dão o sangue derramado
Dá a Primavera o campo colorido
Glória e coroa do mundo renovado
Aos corações dá amor renascido
As balas dão o sangue derramado
Dá o Sol as searas pelo Verão
O fermento ao trigo amassado
No esbraseado forno dá o pão
As balas dão o sangue derramado
Dá cada dia ao homem novo alento
De conquistar o bem que lhe é negado
Dá a conquista um puro sentimento
As balas dão o sangue derramado
Do meditar, concluir, ir e fazer
Dá sobre o mundo o homem atirado
À paz de um mundo novo de viver
As balas dão o sangue derramado
Dá a certeza o querer e o concluir
O que tanto nos nega o ódio armado
Que a vida construir é destruir
Balas que o sangue derramado
Que as balas só dão sangue derramado
Só roubo e fome e sangue derramado
Só ruína e peste e sangue derramado
Só crime e morte e sangue derramado.
AdormecerVai vida na madrugada fria.
O teu amante fica,
na posse deste momento que foi teu,
amorfo e sem limites como um anjo;
a cabeça cheia de estrelas...
Fica abraçado a esta poeira que teu pé levantou.
Fica inútil e hirto como um deus,
desfalecendo na raiva de não poder seguir-te!
Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"
TragédiaFoi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
— vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era «o Senhor António»!...)
ficou dono da loja e chefe da família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado...
— que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de Verão,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: — Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestão...
Manuel da Fonseca, in "Planície"
Antes que Seja TardeAmigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"
AnsiedadeQuero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.
Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!
Noite de Sonhos VoadaNoite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca armodaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— Ó meu amor, já é dia!...
Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"
MeninoNo colo da mãe
a criança vai e vem
vem e vai
balança.
Nos olhos do pai
nos olhos da mãe
vem e vai
vai e vem
a esperança.
Ao sonhado
futuro
sorri a mãe
sorri o pai.
Maravilhado
o rosto puro
da criança
vai e vem
vem e vai
balança.
De seio a seio
a criança
em seu vogar
ao meio
do colo-berço
balança.
Balança
como o rimar
de um verso
de esperança.
Depois quando
com o tempo
a criança
vem crescendo
vai a esperança
minguando.
E ao acabar-se de vez
fica a exacta medida
da vida
de um português.
Criança
portuguesa
da esperança
na vida
faz certeza
conseguida.
Só nossa vontade
alcança
da esperança
humana realidade.
Manuel da Fonseca, in "Poemas para Adriano"
Aldeia
Nove casas,
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.
Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para longe
um nome familiar
se assustam pombos bravos
e acordam ecos no descampado.